A notícia de que vários órgãos de comunicação social (OCS) nacionais — incluindo nomes emblemáticos como o JN – Jornal de Notícias, a Rádio Notícias TSF e, num registo mais recente e independente, o Página UM — se encontram à beira da falência ou em profunda crise financeira, não é apenas uma manchete triste; é um sinal de alarme sobre a saúde da nossa democracia e do jornalismo em Portugal.
A crise que assistimos é multifacetada. O modelo de negócio tradicional, dependente da publicidade e da venda direta, foi destroçado pela ascensão das plataformas digitais. O dinheiro da publicidade migrou em massa para gigantes como Google e Meta, deixando os OCS a lutar por migalhas.
A falência de um jornal diário ou de uma rádio nacional de referência é mais do que a perda de postos de trabalho; é a diminuição do espaço público de debate e do escrutínio rigoroso do poder central. Estes OCS são os pilares que garantem que as decisões tomadas em Lisboa são questionadas, investigadas e reportadas com a profundidade necessária. A sua debilidade financeira compromete diretamente a sua capacidade de investir em jornalismo de investigação de qualidade.
Se a situação nos OCS nacionais é crítica, a dos OCS regionais e locais é, em muitos casos, desesperada. Estes media são vitais para a coesão territorial e para a participação cívica. Eles são a única fonte de informação que responsabiliza a autarquia, que cobre o desporto local e que relata os problemas da rua.
Com orçamentos minúsculos e uma base de leitores/ouvintes mais reduzida, estes media não têm a escala para competir no digital. O seu encerramento deixa vastas áreas do país no ‘apagão’ mediático, enfraquecendo a vigilância democrática a nível local e contribuindo para um fosso de informação entre o litoral e o interior, entre o urbano e o rural.
A ameaça mais profunda à democracia reside na mudança do paradigma de quem escrutina os acontecimentos diários. As redes sociais tornaram-se a principal fonte de notícias para milhões de pessoas. O problema não é a rapidez, mas a filtragem e o controlo editorial.
Quando a informação não é mediada por um jornalista profissional, mas por algoritmos que promovem o sensacionalismo, o conteúdo polarizador e, frequentemente, a desinformação (fake news), o debate público degrada-se. O escrutínio dá lugar ao eco de bolhas ideológicas.
O jornalismo profissional — com o seu código de ética, a sua verificação de factos e a sua separação entre notícia e opinião — é o “porteiro” que historicamente protegeu o público da mentira e da manipulação. Se este “porteiro” for substituído por influencers ou por interesses não declarados que operam nas redes, a confiança nas instituições e a própria capacidade dos cidadãos de tomar decisões informadas em eleições ficam irremediavelmente comprometidas. A democracia não pode prosperar sem factos partilhados.
O jornalismo tem futuro, mas não o modelo de negócio atual. Para que o jornalismo sobreviva, é crucial:
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- O Abandono do Gratuito: O público tem de ser educado a pagar por conteúdo de qualidade. Modelos de subscrição e paywalls são essenciais para financiar o trabalho de investigação.
- Apoio Público Estratégico: Os governos devem encontrar formas de apoiar o jornalismo independente (nacional, regional e local) sem comprometer a sua independência editorial. Isto pode passar por benefícios fiscais, fundos para a inovação digital ou incentivos ao investimento em novas tecnologias de distribuição.
- Maior Regulação das Plataformas: É imperativo que as plataformas digitais contribuam de forma justa para o ecossistema mediático que parasitam, seja através de negociações justas pela utilização de conteúdo noticioso (link tax) ou de uma maior responsabilização pela desinformação que distribuem.
- Aposta na Identidade: O futuro do jornalismo é a qualidade sobre a quantidade, especializando-se em nichos (como o Página UM no jornalismo de investigação especializado) ou na forte ligação à comunidade (o papel insubstituível dos OCS locais).
A crise dos OCS em Portugal é um espelho da crise global do jornalismo, com agravantes num mercado pequeno. O cenário atual aponta para:
Menos Pluralidade: O risco de ter o mercado dominado por um ou dois grandes grupos de media, e a diminuição da diversidade de vozes.
Mais Opinião, Menos Facto: Uma tendência para reduzir os custos, trocando jornalismo de investigação caro por formatos de opinião e talk-shows mais baratos.
Decadência da Esfera Pública: A retirada do escrutínio profissional de muitos quadrantes do poder local e central, deixando o caminho livre para a opacidade e a corrupção.
O jornalismo é um bem público e o seu colapso financeiro é uma falha de mercado com consequências democráticas. Se os cidadãos e o Estado não reconhecerem e apoiarem o valor intrínseco de uma imprensa livre, independente e financeiramente viável, poderemos acordar num futuro onde a “notícia” é o que o algoritmo ou o poder decide que devemos ver. E isso, sim, é a falência da nossa capacidade de autogoverno.
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