Mais uma greve da CP, para durar pelo menos até ao Carnaval e sem serviços mínimos. Mas já ninguém se importa: greves é o que os trabalhadores da CP fazem todos os meses e serviços mínimos é o que a empresa presta todos os dias quando não está de greve. Para desgraça dos utentes e contribuintes, trata-se de uma empresa pública que funciona em monopólio absoluto, num sector essencial e com prejuízos ruinosos e crónicos. Mas já ninguém liga.
- Estivemos na iminência de nos tornarmos o único país mais ou menos civilizado onde um aluno terminaria os estudos secundários de 12 anos sem prestar provas finais, ainda que apenas a três disciplinas e duas das quais à sua escolha. Depois de desistir de classificar os professores, desistiríamos também de classificar os alunos. Atingiríamos assim o Nirvana do ensino público: a escola invisível. Não admira que as inscrições para o ensino privado estejam esgotadas para o ano que vem. É assim que a escola pública ajuda a combater as desigualdades sociais, da mesma forma que o SNS o faz também vendo todos os anos milhares de portugueses (já são 40%) a fugir para os seguros de saúde e os hospitais e clínicas privadas. Porém, e como “os professores a lutar também estão a ensinar”, embora longe das salas de aula, houve que levar isso em conta e baixar o peso dos exames na nota final de curso de 30% para 25%. Uma medida obviamente saudada pelos “especialistas” (que são sempre parte interessada). Como explicou um deles, baixar o peso dos exames “valoriza o trabalho das escolas durante o ano, em detrimento do trabalho dos alunos durante duas horas”. Daqui concluí duas coisas: que o trabalho das escolas durante o ano não pressupõe transmitir aos alunos aprendizagens que os habilitem sequer a passar num exame de duas disciplinas à sua escolha, mais a de Português, onde a regra é terminarem o secundário como semianalfabetos, e que um aluno que faz um exame apenas tem de “trabalhar” durante as duas horas que ele dura. Que grandes coisas se aprendem na escola nos tempos que correm!
- Segundo a Autoridade da Concorrência, há indícios suficientes para suspeitar que durante a pandemia os principais laboratórios do país concertaram entre si o preço dos testes de covid contratados com o Estado. Foram milhões e milhões de testes, que custaram ao erário público para cima de 220 milhões de euros — um verdadeiro maná caído do céu para os laboratórios, enquanto todo o resto da economia e das empresas se desmoronava com um país inteiro de portas fechadas. A ser verdade esta suspeita — que só ganhou força graças à autodenúncia de dois laboratórios estrangeiros —, estamos perante um comportamento ético e empresarial de uma baixeza extrema. Notícias como esta servem para desmantelar a moral de quem ainda quer acreditar neste país. Porque elas dizem-nos que nem mesmo numa situação-limite de saúde pública, numa situação extrema de emergência nacional, a ganância pelo lucro total deixou de falar mais alto, ao mesmo tempo que o Estado revelou, uma vez mais, a sua incapacidade negocial e a sua ineficácia regulatória e fiscalizadora. Mas mais uma vez esta situação — que, mesmo ainda por provar, já seria motivo de escândalo em qualquer país sério — olhamo-la com indiferença, tal é a quantidade de sectores que nos habituámos a ver viver em cartelização numa ou em várias áreas de actividade, desde a banca às telecomunicações, passando pelo patético caso das gasolineiras, com os seus cartazes a gozar com a nossa cara, há anos nas auto-estradas, debitando os preços “concorrenciais” entre elas, sempre iguais até ao cêntimo. Pergunto-me que futuro poderá ter uma economia cuja competitividade das grandes empresas está espartilhada entre monopólios públicos ruinosos e empresas privadas concertadas entre si.
4Esta deprimente sensação de que nada que tenha que passar pelo Estado funciona devidamente — seja a prestação directa de serviços públicos, seja a regulação ou a fiscalização necessária de actividades privadas — talvez seja em parte injusta, mas é em muito alimentada pela própria “cultura” e forma de comunicar do Estado e dos seus servidores perante os utentes. Há um corporativismo ancestral, mas crescente, instalado na máquina da Administração Pública — e de que o jornalismo se faz eco acriticamente — que leva a crer que o seu fim primeiro não é o de servir os utentes, mas sim os seus funcionários. E isto atravessa todos os serviços públicos, da educação à saúde, da economia à justiça.
Há um corporativismo ancestral, mas crescente, instalado na máquina da Administração Pública — e de que o jornalismo se faz eco acriticamente — que leva a crer que o seu fim primeiro não é o de servir os utentes, mas sim os seus funcionários
Peguemos no exemplo da execução do PRR, definido como mais uma última oportunidade para Portugal recuperar o seu atraso da Europa. Todos os que apresentam projectos, empresários ou particulares, se queixam (e o ministro da Economia dá-lhes razão) do infernal circuito burocrático a ultrapassar até que finalmente as verbas do PRR lhes sejam disponibilizadas — como se as decisões empresariais e os investimentos se pudessem compadecer do ritmo, jamais apressado, de quem tem o poder de os aprovar. Mas, por outro lado, está em causa muito dinheiro, 16 mil milhões de euros, o que também não permite que ele seja entregue sem posterior fiscalização e acompanhamento do seu destino. Ora, até hoje, ao fim de um ano, o Tribunal de Contas não realizou mais do que uma única inspecção a todos os projectos já em andamento. E porquê, cabe perguntar? Porque é assim a rotina das coisas ou porque, como justificou um dirigente sindical dos auditores do TC, há ali “desmotivação e mal-estar”? E para qualquer lado para onde nos viremos só ouvimos o mesmo: “desmotivação”. Mas alguém os obriga a trabalhar para o Estado?
5Confesso a minha parte de culpa: em devido tempo, e como toda a gente, não me manifestei contra a organização da Jornada Mundial da Juventude em Lisboa. Mas com várias desculpas: não sou político nem decisor, não tenho religião nem me oponho a manifestações religiosas, desde que não colidam com direitos legítimos meus, já não vivo em Lisboa e, sobretudo, ignorava, na altura, o que era a coisa ao certo e qual a sua dimensão. Mas agora, à medida que fui tomando conhecimento da fatal desmedida portuguesa daquilo que se prepara e do sacudir de responsabilidades de quem sabia e finge ignorar e de quem decidiu julgando poder desresponsabilizar-se depois, a coisa já me incomoda, e muito. Estou farto de pagar impostos para alimentar os sonhos megalómanos de uns quantos visionários saloios que acham que a Escola de Sagres se fez só com caravelas. Julguei que o Euro 2004 já tinha servido de lição, mas eis que agora vejo que também nos querem impingir do nosso bolso um Mundial de Futebol, com a Ucrânia como chafariz publicitário, e uma visita papal como a que João Paulo II fez à Costa do Marfim, de Houphouët-Boigny, e que custou vários PIB do país. Não será o nosso caso, pois iremos “apenas” gastar por volta de 100 milhões de dinheiros públicos — mas o suficiente para tirar dos contentores alentejanos ou dos pardieiros da Mouraria os milhares de escravos asiáticos que o Papa não verá. Mas no México, soubemo-lo agora, a Jornada só custou 18 milhões aos cofres públicos e em Espanha custou zero, foi tudo particular.
Não é só isso ou o célebre palco dos cinco milhões que me indigna, embora não perceba por que não sentam no relvado os mil bispos, junto das suas ovelhas e dos mil urinóis e dois hospitais de campanha, assim poupando o dinheiro do palco. Jesus precisou de algum palco para os seus apóstolos? É, sobretudo, pensar no que irá acontecer à pobre cidade de Lisboa depois de sete dias de rave de um milhão e meio de jovens. O que restará do Parque Eduardo VII e dos jardins de Belém? Quanto tempo demorará a limpar o lixo da cidade, a repor o mobiliário urbano estragado, quantas horas extraordinárias a pagar à polícia, aos bombeiros, aos hospitais, à Carris e Metro? E depois, segundo percebi, para os contribuintes, CML e Governo ficarão as despesas e para a hotelaria e a Igreja ficarão as receitas. A sério? E o Papa sabe disto?
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
(In Jornal Expresso)
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