Poucos países como Portugal conseguem traduzir a alma nacional em dois emblemas desportivos. O Sporting e o Benfica são, mais do que clubes, reflexos vivos da história social e política portuguesa do século XX. Por detrás das camisolas e das paixões, encontra-se uma narrativa de classes, símbolos e ideais, uma oposição quase filosófica entre o conservadorismo e o progressismo.
O Sporting Clube de Portugal nasceu em 1906 sob o impulso de uma figura aristocrática, José Alfredo Holtreman Roquette, o visconde de Alvalade, descendente direto de famílias nobres ligadas ao liberalismo monárquico. A sua ambição era criar “um grande clube, tão grande como os maiores da Europa”, e o nome escolhido, “Sporting”, traduzia uma modernidade inglesa associada à distinção social. O leão, símbolo régio e heráldico, inspirou-se na realeza britânica e no emblema militar português. Nas décadas seguintes, os atletas sportinguistas foram frequentemente militares ou filhos de oficiais, e Alvalade tornou-se um espaço de convívio das elites urbanas de Lisboa. Durante o Estado Novo, a instituição manteve uma aura disciplinada e hierárquica, e não foi fortuito que Marcelo Caetano, já em queda, tenha recebido a sua última grande ovação pública no Estádio de Alvalade em 1973.
O Benfica surgiu em 1904 num contexto diametralmente oposto, no bairro popular de Belém e depois nas imediações da Avenida das Palmeiras, em Lisboa. A génese benfiquista esteve ligada a professores, operários e pequenos funcionários, homens com ideais republicanos e, em alguns casos, associados à maçonaria, num tempo em que o país se agitava com ventos de mudança. O nome “Sport Lisboa e Benfica” uniu dois clubes e duas visões, mas manteve a essência progressista. A águia, símbolo universal da liberdade e da razão, foi adotada como emblema central, numa escolha com ecos maçónicos e iluministas. Desde Napoleão até à república norte-americana, a águia representou o espírito livre, a igualdade e a fraternidade, valores que o Benfica encarnou num país ainda dominado pela rigidez monárquica. Mesmo o nome do Estádio da Luz pode ser lido como metáfora da luz do conhecimento e do esclarecimento, conceitos caros à filosofia maçónica e às revoluções liberais.
Durante o século XX, esta dicotomia simbólica espelhou a própria evolução de Portugal. O Sporting, com raízes aristocráticas e disciplina institucional, foi durante décadas associado à classe média alta e a uma mentalidade conservadora. O Benfica, nascido entre o povo, tornou-se o clube das massas, o “glorioso” das avenidas e dos bairros populares. Enquanto Alvalade mantinha uma reverência pela ordem e pelo estatuto, a Luz fervilhava com a vibração democrática da multidão.
Na atualidade, ambos são transversais. O empresário e o operário, o banqueiro e o estudante vestem igualmente de verde e branco ou de vermelho e branco. A memória histórica, porém, resiste de forma discreta nos símbolos e nas fundações: o leão, guardião da autoridade e da tradição, e a águia, mensageira da liberdade e do voo social. Entre o conservadorismo e o progressismo, entre a herança e a mudança, Sporting e Benfica continuam a representar as duas faces de uma mesma nação, a eterna dialética portuguesa entre o poder e o povo, entre o passado e o futuro.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor
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